Carolina Maria de Jesus, an author for the present
Revisiting the life and work of the groundbreaking writer
Tom Farias
| BRAZIL |
translated by Edmund Ruge
Reflecting on the written memory of Minas de Gerais author Carolina Maria de Jesus (1914-1977) requires care and effort. For someone that barely knows or has never heard of the author of the book Quarto de despejo–diário de uma favelada, published in August of 1960, we must start at the beginning. Carolina Maria de Jesus was born in Sacramento, a small city in the south of Minas Gerais, to a black family of the last enslaved generation of Africans and Afro-descendants brought against their will or born in Brazil. De Jesus herself called her grandfather, the nicknamed African Socrates, soldo do escravidao,1 not for his physical and mental characteristics, but for his adaptation to the system that would conform him to the demands of being black, poor, and born to illiterate parents.
Carolina Maria de Jesus would have had only to follow the path laid out for her by the Casa Grande2 and by powerful landowners, remnants of the bandeirante3 period and the bossism created by violence and rampant rural coronelismo.4 Formed of the same clay that made up the rest of her family, clay the color of bitita — a word derived from the word mbita, from the Mozambican language of Changana, meaning “clay pot,” and, as the Infopedia Dictionary of Portuguese puts it, the “singular feminine diminutive of this term results in the word ‘bitita."5 Thus, bitita (the author’s childhood nickname) refers to something of clay, ochre or black in color.
This enslaved ancestrality and the forced destiny of subservience, on the contrary, gave de Jesus courage and drive, beginning in the two years she spent frequenting a Spiritist high school. Determination and dreams beyond measure pushed the little black girl to exceed all imaginable, to do the unthinkable and the impossible — and in her persistence in learning to read, even as a little girl, she was deemed crazy. At a tender age, she was arrested and thrown in jail.
Carolina Maria de Jesus had her life journey associated with the question of social disorder because she did not accept for herself a life path directed by others. Her life as a manual laborer, from babysitter to domestic servant, from cook to factory worker, turned her into a pilgrim, taking long journeys by foot from city to city in search of bread and dignity.
In the big city, however, she found unanticipated pain and glory. In São Paulo’s 1940s to 1960s, she charted her existence as stark proof of her “change in function”: a poor little semiliterate black girl could never dare to become an intellectual. To write, even in old notebooks found in the trash, or in the newspapers, was something for the “lettered” or and learned (all male) academics. But de Jesus pushed her way in, doused in courage and daring, masterfully rewriting her own DNA. On the streets of the big city, she turned from an “exotic object,” spending cold nights in tenements and on the sidewalks beneath highway overpasses, to “out of order” — something to be thrown out, destined for the trash heap, for despejo6.
From this impure mud she picked the most precious flower — her ideas and thoughts on Brazil’s underground, where the yell of the favela and its people echoed strongest. Quarto de despejo, her debut book, triggered a new schism in Brazilian intellectual life — one not felt since romanticism, one that would shake literature strong enough to cause a break with colonialism.
Her literature brought the gift of revolt and of revolution. The aesthetic was, from a conceptual standpoint, that of the canon being broken, akin to a useless bookbinding. Carolina de Jesus — not only with Quarto do despejo, but in her other works, even those yet unpublished — shook the ivory tower, that spearhead between the old and the new (modernizing but outdated on account of its conservatism) in our literature.
With her writing she imposed a new code of literary conduct: it is the woman of the people that writes, literarily, fable-ly, poetically, the anguish of the people. In this aesthetic scheme, she broke from the condition of “unlettered” to writer; from invisibility to fame. In Brazil, she would stand on par with Jorge Amado, Clarice Lispector, Dinah Silveira de Queiroz, Raquel de Queiroz. Internationally, she would break all possible and imaginable barriers. At the junction of these two standards, de Jesus became the new canon. Elitist rhetoric stood (and stands) in opposition to this new reality. Racially aggressive, her narrative is harrowing, discursive, modern at the same time that remains in touch with reality and lives within the changing anxieties of Brazilian national consciousness. In fiction, she speaks through her romances, especially in Pedaços da fome, in poetry, just remember the strength of O colono e o fazendeiro, in short stories, Onde estas Felicidade?
Carolina is the factor that breaks with the reining literary neocolonialism, active since Brazil’s Semana de Arte Moderna in 1922. Her legacy and increasing presence today testify to the force of nature in her written thought, which remains current and contemporary, subversive and revolutionary, rebranded as alternative, marginal, peripheral.
Born 105 years ago, de Jesus left with us much more than unpublished works, dreams, and resilience. Revisiting her work has become more and more urgent. Reading her is, to put it crudely, absolutely imperative. She is still muzzled by the threat of 1964.7 Her voice has been hushed in dungeons of national consciousness. Speaking of and reading de Jesus has become something dangerous, risky, threatening. Treating her as the author, thinker, and intellectual that she is has become a condemnation, an affront to the caste of the academic ivory tower of literature and learning.
This is a long and stony road. This is work that remains to be done — done with the same pain and suffering endured by the black current author Carolina Maria de Jesus.
TRADUÇÃO:
Carolina Maria de Jesus, autora do presente
Revisitando a vida e a obra do escritor inovador
Tom Farias
| | BRASIL
traduzido por Edmund Ruge
Refletos na memória escrita da autora mineira Carolina Maria de Jesus (1914-1977) requer cuidado e esforço. Para alguém que mal conhece ou nunca ouviu falar do autor do livro Quarto de despejo-diário de uma favelada, publicado em agosto de 1960, devemos começar no início. Carolina Maria de Jesus nasceu em Sacramento, pequena cidade do sul de Minas Gerais, de uma família negra da última geração escravizada de africanos e afrodescendentes contra sua vontade ou nascidos no Brasil. De Jesus chamou seu avô, o apelidado de Sócrates Africano, soldo do escravidao,1 não por suas características físicas e mentais, mas por sua adaptação ao sistema que o conformaria às exigências de ser negro, pobre e nascido de pais analfabetos.
Carolina Maria de Jesus teria apenas que seguir o caminho traçado para ela pelo Casa Grande2 e por proprietários poderosos, remanescentes do bandeirante3 período e o mandodo criado pela violência e coronelismo rural desenfreado.4 Formada com a mesma argila que compôs o resto de sua família, argila a cor da bitita — uma palavra derivada da palavra mbita, da língua moçambicana de Changana, que significa "pote de argila", e, como diz o Dicionário Infopedia de Português, o "diminutivo feminino singular deste termo resulta na palavra 'bitita'.5 Assim, bitita (apelido de infância do autor) refere-se a algo de argila, ochre ou preto de cor.
Essa ancestralidade escravizada e o destino forçado da subserviência, pelo contrário, deram coragem e impulso a De Jesus, começando nos dois anos que passou frequentando uma escola espírita. Determinação e sonhos além da medida levaram a menina negra a superar tudo o que era imaginável, a fazer o impensável e o impossível — e em sua persistência em aprender a ler, mesmo quando menina, ela era considerada louca. Em uma idade terna, ela foi presa e jogada na cadeia.
Carolina Maria de Jesus teve sua jornada de vida associada à questão da desordem social porque não aceitava para si mesma um caminho de vida dirigido pelos outros. Sua vida como trabalhadora manual, de babá a empregada doméstica, de cozinheira a trabalhadora de fábrica, a transformou em peregrina, fazendo longas viagens a pé de cidade em cidade em busca de pão e dignidade.
Na cidade grande, no entanto, ela encontrou dor e glória inesperadas. Nas temporadas 1940 e 1960 de São Paulo, ela traçou sua existência como prova de sua "mudança de função": uma pobre menina negra semiliterada nunca poderia ousar se tornar uma intelectual. Escrever, mesmo em cadernos antigos encontrados no lixo, ou nos jornais, era algo para os acadêmicos "escritos" ou e aprendidos (todos homens). Mas De Jesus entrou, se estonteou com coragem e ousadia, reescrevendo magistralmente seu próprio DNA. Nas ruas da cidade grande, ela se afastou de um "objeto exótico", passando noites frias em cortiços e nas calçadas sob viadutos da rodovia, para "fora de ordem" — algo a ser jogado fora, destinado ao monte de lixo, para despejo6.
Dessa lama impura ela escolheu a flor mais preciosa — suas ideias e pensamentos sobre o subsolo do Brasil, onde o grito da favela e seu povo ecoavam mais forte. Quarto de despejo, seu livro de estreia, desencadeou um novo cisma na vida intelectual brasileira — que não se sentia desde o romantismo, que abalaria a literatura forte o suficiente para causar uma ruptura com o colonialismo.
Sua literatura trouxe o dom da revolta e da revolução. A estética era, do ponto de vista conceitual, a do cânone sendo quebrado, semelhante a uma bookbinding inútil. Carolina de Jesus — não só com Quarto do despejo, mas em suas outras obras, mesmo aquelas ainda inéditas — sacudiu a torre de marfim, que lidera entre o velho e o novo (modernizando-se, mas desatualizado por conta de seu conservadorismo) em nossa literatura.
Com sua escrita, ela impôs um novo código de conduta literária: é a mulher do povo que escreve, literal, fábula, poeticamente, a angústia do povo. Nesse esquema estético, ela rompeu com a condição de "unlettered" para escritor; da invisibilidade à fama. No Brasil, ela ficaria no mesmo patamar de Jorge Amado, Clarice Lispector, Dinah Silveira de Queiroz, Raquel de Queiroz. Internacionalmente, ela quebraria todas as barreiras possíveis e imagináveis. Na junção desses dois padrões, De Jesus tornou-se o novo canhão. A retórica elitista ficou (e se posiciona) em oposição a essa nova realidade. Racialmente agressiva, sua narrativa é angustiante, discursiva, moderna ao mesmo tempo que mantém contato com a realidade e vive dentro das ansiedades em mudança da consciência nacional brasileira. Na ficção, ela fala através de seus romances, especialmente em Pedaços da fome, na poesia, só se lembra da força de O colono e o fazendeiro, em contos, Onde estas Felicidade?
Carolina é o fator que rompe com o neocolonialismo literário reining, ativo desde a Semana de Arte Moderna do Brasil, em 1922. Seu legado e presença crescente hoje testemunham a força da natureza em seu pensamento escrito, que permanece atual e contemporâneo, subversivo e revolucionário, rebatizado como alternativo, marginal, periférico.
Nascido há 105 anos, De Jesus deixou conosco muito mais do que obras, sonhos e resiliência inéditos. Revisitar seu trabalho tornou-se cada vez mais urgente. Lê-la é, para dizer, grosseiramente, absolutamente imperativo. Ela ainda está amordaçada pela ameaça de 1964.7 Sua voz foi silenciada em masmorras da consciência nacional. Falar e ler de Jesus tornou-se algo perigoso, arriscado, ameaçador. Tratá-la como autora, pensador e intelectual que ela é tornou-se uma condenação, uma afronta à casta da torre acadêmica de marfim da literatura e da aprendizagem.
Esta é uma estrada longa e pedregosa. Este é um trabalho que ainda está por ser feito — feito com a mesma dor e sofrimento sofridos pela atual autora negra Carolina Maria de Jesus.
“A tontura da fome é pior do que a do álcool. A tontura do álcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar dentro do estômago.”
– Carolina Maria de Jesus, em “Quarto de despejo”, 1960.
Não digam que fui rebotalho,
que vivi à margem da vida.
Digam que eu procurava trabalho,
mas fui sempre preterida.
Digam ao povo brasileiro
que meu sonho era ser escritora,
mas eu não tinha dinheiro
para pagar uma editora.
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